Há nas obras de Aristóteles uma idéia medular, que escapou
à percepção de quase todos os seus leitores e comentaristas, da Antigüidade
até hoje. Mesmo aqueles que a perceberam — e foram apenas dois, que
eu saiba, ao longo dos milênios — limitaram-se a anotá-la de passagem,
sem lhe atribuir explicitamente uma importância decisiva para a compreensão
da filosofia de Aristóteles.
No entanto, ela é a chave mesma dessa compreensão, se por compreensão
se entende o ato de captar a unidade do pensamento de um homem desde suas
próprias intenções e valores, em vez de julgá-lo de fora; ato que implica
respeitar cuidadosamente o inexpresso e o subentendido, em vez de sufocá-lo
na idolatria do "texto" coisificado, túmulo do pensamento.
A essa idéia denomino
Teoria dos Quatro Discursos. Pode ser resumida em uma frase:
o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro
maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica (lógica).
Dita assim, a idéia não
parece muito notável. Mas, se nos ocorre que os nomes dessas quatro modalidades
de discurso são também nomes de quatro ciências, vemos que segundo essa
perspectiva a Poética, a Retórica, a Dialética e a Lógica, estudando modalidades
de uma potência única, constituem também variantes de uma ciência única.
A diversificação mesma em quatro ciências subordinadas tem de assentar-se
na razão da unidade do objeto que enfocam, sob pena de falharem à regra
aristotélica das divisões. E isto significa que os princípios de cada
uma delas pressupõem a existência de princípios comuns que as subordinem,
isto é, que se apliquem por igual a campos tão diferentes entre si como
a demonstração científica e a construção do enredo trágico nas peças teatrais.
Então a idéia que acabo de atribuir a Aristóteles já começa a nos parecer
estranha, surpreendente, extravagante. E as duas perguntas que ela nos
sugere de imediato são: Terá Aristóteles realmente pensado assim? E, se
pensou, pensou com razão? A questão biparte-se portanto numa investigação
histórico-filológica e numa crítica filosófica. Não poderei, nas dimensões
da presente comunicação, realizar a contento nem uma, nem a outra. Em
compensação, posso indagar as razões da estranheza.
O espanto que a idéia
dos Quatro Discursos provoca a um primeiro contato advém de um costume
arraigado da nossa cultura, de encarar a linguagem poética e a linguagem
lógica ou científica como universos separados e distantes, regidos por
conjuntos de leis incomensuráveis entre si. Desde que um decreto de Luís
XIV separou em edifícios diversos as "Letras" e as "Ciências",
o fosso entre a imaginação poética e a razão matemática não cessou de
alargar-se, até se consagrar como uma espécie de lei constitutiva do espírito
humano. Evoluindo como paralelas que ora se atraem ora se repelem mas
jamais se tocam, as duas culturas, como as chamou C. P. Snow, consolidaram-se
em universos estanques, cada qual incompreensível ao outro. Gaston Bachelard,
poeta doublé de matemático, imaginou poder descrever esses dois
conjuntos de leis como conteúdos de esferas radicalmente separadas, cada
qual igualmente válido dentro de seus limites e em seus próprios termos,
entre os quais o homem transita como do sono para a vigília, desligando-se
de um para entrar na outra, e vice-versa:
a linguagem dos sonhos não contesta a das equações, nem esta penetra no
mundo daquela. Tão funda foi a separação, que alguns desejaram encontrar
para ela um fundamento anatômico na teoria dos dois hemisférios cerebrais,
um criativo e poético, outro racional e ordenador, e acreditaram ver uma
correspondência entre essas divisões e a dupla yin-yang da cosmologia
chinesa. Mais ainda, julgaram
descobrir no predomínio exclusivo de um desses hemisférios a causa dos
males do homem Ocidental. Uma visão um tanto mistificada do ideografismo
chinês, divulgada nos meios pedantes por Ezra Pound(, deu a essa teoria um respaldo literário mais do que suficiente para
compensar sua carência de fundamentos científicos. A ideologia da "Nova
Era" consagrou-a enfim como um dos pilares da sabedoria.
Nesse quadro, o velho
Aristóteles posava, junto com o nefando Descartes, como o protótipo mesmo
do bedel racionalista que, de régua em punho, mantinha sob severa repressão
o nosso chinês interior. O ouvinte imbuído de tais crenças não pode mesmo
receber senão com indignado espanto a idéia que atribuo a Aristóteles.
Ela apresenta como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumavam
encarar como um guardião da esquizofrenia. Ela contesta uma imagem estereotipada
que o tempo e a cultura de almanaque consagraram como uma verdade adquirida.
Ela remexe velhas feridas, cicatrizadas por uma longa sedimentação de
preconceitos.
A resistência é, pois,
um fato consumado. Resta enfrentá-la, provando, primeiro, que a idéia
é efetivamente de Aristóteles; segundo, que é uma excelente idéia, digna
de ser retomada, com humildade, por uma civilização que se apressou em
aposentar os ensinamentos do seu velho mestre antes de os haver examinado
bem. Não poderei aqui senão indicar por alto as direções onde devem ser
buscadas essas duas demonstrações.
Aristóteles escreveu
uma Poética, uma Retórica, um livro de Dialética (os Tópicos)
e dois tratados de Lógica (Analíticas I e II), além de duas obras
introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral (Categorias
e Da Interpretação). Todas essas obras andaram praticamente desaparecidas,
como as demais de Aristóteles, até o século I a. C., quando um certo Andrônico
de Rodes promoveu uma edição de conjunto, na qual se baseiam até hoje
nossos conhecimentos de Aristóteles.
Como todo editor póstumo,
Andrônico teve de colocar alguma ordem nos manuscritos. Decidiu tomar
como fundamento dessa ordem o critério da divisão das ciências em introdutórias
(ou lógicas), teoréticas, práticas e técnicas (ou
poiêticas, como dizem alguns). Esta divisão tinha o mérito de ser
do próprio Aristóteles. Mas, como observou com argúcia Octave Hamelin,
não há nenhum motivo para supor que a divisão das obras de um filósofo
em volumes deva corresponder taco-a-taco à sua concepção das divisões
do saber. Andrônico deu essa correspondência por pressuposta, e agrupou
os manuscritos, portanto, nas quatro divisões. Mas, faltando outras obras
que pudessem entrar sob o rótulo técnicas, teve de meter lá a Retórica
e a Poética, desligando-as das demais obras sobre a teoria do discurso,
que foram compor a unidade aparentemente fechada do Organon, conjunto
das obras lógicas ou introdutórias.
Somada a outras circunstâncias,
essa casualidade editorial foi pródiga em conseqüências, que se multiplicam
até hoje. Em primeiro lugar, a Retórica — nome de uma ciência abominada
pelos filósofos, que nela viam o emblema mesmo de seus principais adversários,
os sofistas — não suscitou, desde sua primeira edição por Andrônico,
o menor interesse filosófico. Foi lida apenas nas escolas de retórica,
as quais, para piorar as coisas, entravam então numa decadência acelerada
pelo fato de que a extinção da democracia, suprimindo a necessidade de
oradores, tirava a razão de ser da arte retórica, encerrando-a na redoma
de um formalismo narcisista
Logo em seguida, a Poética, por sua vez, sumiu de circulação, para
só reaparecer no século XVI.
Estes dois acontecimentos parecem fortuitos e desimportantes. Mas, somados,
dão como resultado nada menos que o seguinte: todo o aristotelismo ocidental,
que, de início lentamente, mas crescendo em velocidade a partir do século
XI, foi se formando no período que vai desde a véspera da Era Cristã até
o Renascimento, ignorou por completo a Retórica e a Poética.
Como nossa imagem de Aristóteles ainda é uma herança desse período (já
que a redescoberta da Poética no Renascimento não despertou interesse
senão dos poetas e filólogos, sem tocar o público filosófico), até hoje
o que chamamos de Aristóteles, para louvá-lo ou para maldizê-lo, não é
o homem de carne e osso, mas um esquema simplificado, montado durante
os séculos que ignoravam duas das obras dele. Em especial, nossa visão
da teoria aristotélica do pensamento discursivo é baseada exclusivamente
na analítica e na tópica, isto é, na lógica e na dialética, amputadas
da base que Aristóteles tinha construído para elas na poética e na retórica.
Mas a mutilação não parou
aí. Do edifício da teoria do discurso, haviam sobrado só os dois andares
superiores — a dialética e a lógica —, boiando sem alicerces
no ar como o quarto do poeta na "Última canção do beco" de Manuel
Bandeira. Não demorou a que o terceiro andar fosse também suprimido: a
dialética, considerada ciência menor, já que lidava somente com a demonstração
provável, foi preterida em benefício da lógica analítica, consagrada desde
a Idade Média como a chave mesma do pensamento de Aristóteles. A imagem
de um Aristóteles constituído de "lógica formal + sensualismo cognitivo
+ teologia do Primeiro Motor Imóvel" consolidou-se como verdade histórica
jamais contestada.
Mesmo o prodigioso avanço
dos estudos biográficos e filológicos inaugurado por Werner Jaeger
não mudou isso. Jaeger apenas derrubou o estereótipo de um Aristóteles
fixo e nascido pronto, para substituir-lhe a imagem vivente de um pensador
que evolui no tempo em direção à maturidade das suas idéias. Mas o produto
final da evolução não era, sob o aspecto aqui abordado, muito diferente
do sistema consagrado pela Idade Média: sobretudo a dialética seria nele
um resíduo platônico, absorvido e superado na lógica analítica.
Mas essa visão é contestada
por alguns fatos. O primeiro, ressaltado por Éric Weil, é que o inventor
da lógica analítica jamais se utiliza dela em seus tratados, preferindo
sempre argumentar dialeticamente.
Em segundo lugar, o próprio Aristóteles insiste em que a lógica não traz
conhecimento, mas serve apenas para facilitar a verificação dos conhecimentos
já adquiridos, confrontando-os com os princípios que os fundamentam, para
ver se não os contradizem. Quando não possuímos os princípios, a única
maneira de buscá-los é a investigação dialética que, pelo confronto das
hipóteses contraditórias, leva a uma espécie de iluminação intuitiva que
põe em evidência esses princípios. A dialética em Aristóteles é, portanto,
segundo Weil, uma logica inventionis, ou lógica da descoberta:
o verdadeiro método científico, do qual a lógica formal é apenas um complemento
e um meio de verificação.
Mas a oportuna intervenção
de Weil, se desfez a lenda de uma total hegemonia da lógica analítica
no sistema de Aristóteles, deixou de lado a questão da retórica. O mundo
acadêmico do século XX ainda subscreve a opinião de Sir David Ross, que
por sua vez segue Andrônico: a Retórica tem "um propósito
puramente prático"; "não constitui um trabalho teórico"
e sim "um manual para o orador".
Mas à Poética, por seu lado, Ross atribui um valor teórico efetivo,
sem reparar que, se Andrônico errou neste caso, pode também ter se enganado
quanto à Retórica. Afinal, desde o momento em que foi redescoberta,
a Poética também foi encarada sobretudo como "um manual prático"
e interessou antes aos literatos do que aos filósofos.
De outro lado, o próprio livro dos Tópicos poderia ser visto como
"manual técnico" ou pelo menos "prático" — pois
na Academia a dialética funcionava exatamente como tal: era o conjunto
das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, a classificação de Andrônico,
uma vez seguida ao pé da letra, resulta em infindáveis confusões, as quais
se podem resolver todas de uma vez mediante a admissão da seguinte hipótese,
por mais perturbadora que seja: como ciências do discurso, a Poética e
a Retórica fazem parte do Organon, conjunto das obras lógicas ou
introdutórias, e não são portanto nem teoréticas nem práticas nem técnicas.
Este é o núcleo da interpretação que defendo. Ela implica, porém, uma
profunda revisão das idéias tradicionais e correntes sobre a ciência aristotélica
do discurso. Esta revisão, por sua vez, arrisca ter conseqüências de grande
porte para a nossa visão da linguagem e da cultura em geral. Reclassificar
as obras de um grande filósofo pode parecer um inocente empreendimento
de eruditos, mas é como mudar de lugar os pilares de um edifício. Pode
exigir a demolição de muitas construções em torno.
As razões que alego para
justificar essa mudança são as seguintes:
l. As quatro ciências
do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra,
influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades
de discurso caracterizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade:
(a) O discurso poético versa sobre o possível (dunatoV,
dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo
que ela mesma presume (eikastikoV, eikástikos,
"presumível"; eikasia, eikasia, "imagem", "representação").
(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil
(piqanoV, pithános) e por meta a produção
de uma crença firme (pistiV,
pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência
da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por
meio da persuasão (peiqo, peitho), que
é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como
resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma
decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro
de um determinado quadro de crenças admitidas.
(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou
impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas
de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias
transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades
(dia, diá = "através de" e
indica também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada
peirástica, da raiz peirá (peira = "prova",
"experiência", de onde vêm peirasmoV,
peirasmos, "tentação", e as nossas palavras empiria,
empirismo, experiência etc., mas também, através de peirateV,
peirates, "pirata": o símbolo mesmo da vida aventureira,
da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede enfim, por
ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou
tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo
as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.
(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo
sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo
encadeamento silogístico, à demonstração certa (apodeixiV,
apodêixis, "prova indestrutível") da veracidade das conclusões.
É visível que há aí uma escala de credibilidade
crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e
finalmente para o certo ou verdadeiro. As palavras mesmas usadas por Aristóteles
para caracterizar os objetivos de cada discurso evidenciam essa gradação:
há, portanto, entre os quatro discursos, menos uma diferença de natureza
que de grau.
Possibilidade, verossimilhança, probabilidade
razoável e certeza apodíctica são, pois, os conceitos-chave
sobre os quais se erguem as quatro ciências respectivas: a Poética estuda
os meios pelos quais o discurso poético abre à imaginação o reino do possível;
a Retórica, os meios pelos quais o discurso retórico induz a vontade do
ouvinte a admitir uma crença; a Dialética, aqueles pelos quais o discurso
dialético averigua a razoabilidade das crenças admitidas, e, finalmente,
a Lógica ou Analítica estuda os meios da demonstração apodíctica, ou certeza
científica. Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativos uns aos
outros: não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem confronto
com o razoável, e assim por diante. A conseqüência disto é tão óbvia que
chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido: as quatro ciências
são inseparáveis; tomadas isoladamente, não fazem nenhum sentido. O que
as define e diferencia não são quatro conjuntos isoláveis de caracteres
formais, porém quatro possíveis atitudes humanas ante o discurso, quatro
motivos humanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação
à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para examinar
criticamente a base das crenças que fundamentam suas resoluções, ou para
explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos já admitidos como
absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício do saber científico.
Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em si mesmo
e por sua mera estrutura interna, mas pelo objetivo a que tende em seu
conjunto, pelo propósito humano que visa a realizar. Daí que os quatro
sejam distinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles só é o que é quando
considerado no contexto da cultura, como expressão de intuitos humanos.
A idéia moderna de delimitar uma linguagem "poética em si" ou
"lógica em si" pareceria aos olhos de Aristóteles uma substancialização
absurda, pior ainda: uma coisificação alienante.
Ele ainda não estava contaminado pela esquizofrenia que hoje se tornou
o estado normal da cultura.
2. Mas Aristóteles vai
mais longe: ele assinala a diferente disposição psicológica correspondente
ao ouvinte de cada um dos quatro discursos, e as quatro disposições formam
também, da maneira mais patente, uma gradação:
(a) Ao ouvinte do discurso
poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que
"não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil",
para captar a verdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma
narrativa aparentemente inverossímil.
Aristóteles, em suma, antecipa a suspension of disbelief de que
falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério
de verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que
as desventuras do herói trágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou
a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.
(b) Na retórica antiga,
o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um
voto, uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica,
admite três tipos de discursos retóricos: o discurso forense, o
discurso deliberativo e o discurso epidíctico, ou de louvor
e censura (a um personagem, a uma obra, etc.).
Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou inocência
de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto,
etc., sobre os méritos ou deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto,
consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se no ouvinte do discurso
poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para
levá-la ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse
nenhuma conseqüência prática imediata, aqui é a vontade que ouve
e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos.
(c) Já o ouvinte do discurso
dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético.
Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade,
aproximação que pode ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem
sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir
deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja
persuadir, como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente
deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para
tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente
a mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis.
O dialético não defende um partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta
investigação só é possível quando ambos os participantes do diálogo conhecem
e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será
julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da
demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de
resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos
de que não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça
os princípios da ciência: seria expor-se a objeções de mera retórica,
prostituindo a filosofia.
(d) Finalmente, no plano
da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear
de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente
verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem
como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo do mestre:
ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração,
o assunto volta à discussão dialética.
De discurso em discurso,
há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: da ilimitada
abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das
crenças realmente aceitas na praxis coletiva; porém, da massa das
crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores
da triagem dialética; e, destas, menos ainda são as que podem ser
admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim,
como premissas de raciocínios cientificamente válidos. A esfera própria
de cada uma das quatro ciências é portanto delimitada pela contigüidade
da antecedente e da subseqüente. Dispostas em círculos concêntricos, elas
formam o mapeamento completo das comunicações entre os homens civilizados,
a esfera do saber racional possível.
3. Finalmente, ambas as escalas são exigidas pela teoria
aristotélica do conhecimento. Para Aristóteles, o conhecimento começa
pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação
ou fantasia (fantasia), que os agrupa em imagens (eikoi,
eikoi, em latim species, speciei), segundo suas semelhanças.
É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente
sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização
com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos
das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios.
Dos sentidos ao raciocínio abstrato, há uma dupla ponte a ser atravessada:
a fantasia e a chamada simples apreensão, que capta as noções isoladas.
Não existe salto: sem a intermediação da fantasia e da simples apreensão,
não se chega ao estrato superior da racionalidade científica. Há uma perfeita
homologia estrutural entre esta descrição aristotélica do processo cognitivo
e a Teoria dos Quatro Discursos. Não poderia mesmo ser de outro modo:
se o indivíduo humano não chega ao conhecimento racional sem passar pela
fantasia e pela simples apreensão, como poderia a coletividade —
seja a polis ou o círculo menor dos estudiosos — chegar à
certeza científica sem o concurso preliminar e sucessivo da imaginação
poética, da vontade organizadora que se expressa na retórica e da triagem
dialética empreendida pela discussão filosófica?
Retórica e Poética uma
vez retiradas do exílio "técnico" ou "poiêtico" em
que as pusera Andrônico e restauradas na sua condição de ciências filosóficas,
a unidade das ciências do discurso leva-nos ainda a uma verificação surpreendente:
há embutida nela toda uma filosofia aristotélica da cultura como expressão
integral do logos. Nessa filosofia, a razão científica surge como
o fruto supremo de uma árvore que tem como raiz a imaginação poética,
plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza sensível não
é para Aristóteles apenas uma "exterioridade" irracional e hostil,
mas a expressão materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se
do solo mitopoético até os cumes do conhecimento científico, surge aí
como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura
na autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão
filosófica à atividade autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente,
em autoconsciência. O cume da reflexão filosófica, que coroa o edifício
da cultura, é, com efeito, gnosis gnoseos, o conhecimento do conhecimento.
Ora, este se perfaz tão somente no instante em que a reflexão abarca recapitulativamente
a sua trajetória completa, isto é, no momento em que, tendo alcançado
a esfera da razão científica, ela compreende a unidade dos quatro discursos
através dos quais se elevou progressivamente até esse ponto. Aí ela está
preparada para passar da ciência ou filosofia à sabedoria, para ingressar
na Metafísica, que Aristóteles, como bem frisou Pierre Aubenque, prepara
mas não realiza por completo, já que o reino dela não é deste mundo
A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término
da filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente
dito: há somente a "ciência que se busca", a aspiração do conhecimento
supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a realização
e o fim da filosofia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário